Preto Cozinha: a história é o tempero do prato
Em entrevista ao Portal Rap Dab, Rodrigo Freire, chef do restaurante “Preto Cozinha”, explica o sabor que introduziu na culinária paulistana
“Aqui a gente oferece essa comida de preto em um patamar de igualdade, assim como você vai em um restaurante italiano ou japonês, nós estamos oferecendo essa culinária baiana sobre a perspectiva de que a gente também pode entregar um nível maior de excelência, além do caricato”, diz Rodrigo Freire.
Em um país conhecido por “acabar com tudo em pizza”, São Paulo recebeu um espaço que começou a sua história com o azeite de dendê. Recheado de memórias e receitas familiares, a inspiração para construir um cardápio que exalta a ancestralidade e apresenta a mistura de Portugal e África, gerando um sabor que só a Bahia imprime e tem acesso, o chef Rodrigo Freire trouxe o Preto Cozinha para o maior polo gastronômico paulista, o bairro de Pinheiros.
Paredes brancas inspiradas na parte interna das casas em Salvador, decorado em plantas de cores verdes vibrantes e cercado por janelas amplas que convidam a luz para dançar entre mesas e cadeiras de design moderno, além do conjunto ornamentos artísticos de telas que recebem os visitantes já logo na entrada. Esse é o restaurante “Preto Cozinha”, localizado na rua Fradique Coutinho, 276.
“O Preto para mim é essa experiência inteira. Você chegar aqui e ter essa sensação da luz natural, essa energia que o lugar traz era o que me preocupava, até mais do que em ter mais mesas. Sentia falta de quando ia aos restaurantes com os meus pais e comia olhando para o mar, tudo amplo e cheio de espaço. Assim foi se desenhando com o arquiteto. Bruno Batistela, pedi para que tivesse cara de sala de casa, aqui dá pra ir juntando mesa conforme vão chegando os amigos, é bem livre.”
Mas o verdadeiro artista e anfitrião do espaço é Rodrigo Freire, 36, soteropolitano, o chef de cozinha também é um grande advogado que resolveu defender o direito de que comida boa seja a que for melhor servida. Conversar com o chef Rodrigo é desmistificar a frase “melhor feito do que perfeito”, às vezes, a opção mais leal com público é ser perfeito desde o preparo até o sabor.
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“As pessoas acham que polenta não poderia estar no cardápio, acham que é um prato que a avó italiana deles fazia, quando na verdade é um prato de origem africana. Foram com essas informações que o ‘Preto’ foi ganhando forma definitiva, pela comunhão de energia para tentar reverenciar essa culinária que, de alguma maneira, poderia ter um pouco mais de atenção.”
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POR QUE, PRETO?
O restaurante estreou em 2022 e foi um desses presentes que o Brasil ganhou após a pandemia, esse abraço na alma e no estômago nasce batizado com o apelido de infância e que o baiano carrega até hoje, principalmente, como ele conta, quando recebe ligações de sua mãe e tias, “Oi, Preto, tudo bem?”. Não é sempre que estamos vivendo o melhor momento, mas ao entrar no restaurante logo parece que o filtro de vida perfeita do Instagram foi transportado para o ambiente, mas agora, ao invés de modificar traços e imagem, é encontrado beleza cercada de sentimentos reais e ideias pensadas para fazer tudo brilhar da forma mais humana e subjetiva possível.
“Quando eu estava pensando o nome, já tinha o cardápio e tudo, então comecei a pesquisar mais sobre a origem dos pratos, fiquei curioso. Não há uma divulgação massiva como em outras culinárias, tinha impressão de que ‘eu sei porque eu sei’, mas achei um autor, o Manoel Querino, ele usava um termo que era: culinária afrodescendente. Uma comida composta da mistura de África, Portugal e culinária indígena, que é a origem da comida baiana. Achei muito interessante e o nome se formou naturalmente na minha cabeça.”
Com um grande sorriso no rosto, apresentando seus companheiros de equipe do restaurante que, antes de iniciar o funcionamento trocam brincadeiras, escutam suas músicas e revelam um ambiente que não tem só beleza na estrutura, mas também na convivência e troca.
COMIDA DE PRETO, COZINHA DO PRETO
“Tem gente que chega aqui às duas da tarde e só vai embora às onze da noite. Já teve cliente que fechou a conta umas cinco vezes, mas aí chega um amigo e ele abre outra conta, pede mais um drink e fica conversando. O ambiente, principalmente a área externa que fica lá embaixo, é muito convidativo. Só fica complicado ter a compreensão de quem ainda está na fila lá fora querendo entrar hahaha.”
Com um cardápio variado, mas que carrega grandes estrelas como ingredientes, os itens usados nos pratos não se modificam tanto entre uma receita e outra, mas já no paladar impressionam na entrega de resultados extremamente diferentes ao mudar a forma de serem preparados.
“Aqui tem o filtro da sustentabilidade, queria partir do princípio de evitar desperdício e não gerar lixo. A ideia é que os ingredientes que entrassem na cozinha tivessem várias finalidades. Conversando com outros chefs, percebi que era comprado um tipo de sal específico usado em apenas uma receita, e isso faz com que os itens não sejam bem aproveitados durante o seu tempo de validade. Se você olhar o meu cardápio todos os ingredientes se repetem, embora os pratos não sejam nem em sabor ou visual parecidos, porque é comida simples. O que importa aqui é a técnica, esse vai e vem do cozimento é o que compõe a nossa culinária autoral.”
O coentro, leite de coco, azeite de dendê e camarão seco são os pilares da cozinha, os preparos são feitos “de maneira lenta”, como informa Rodrigo, isso traz além de sabor uma experiência ao público.
Por exemplo, o camarão seco que é obtido de trabalhadores responsáveis, pescado somente na lua nova por pescadores de uma comunidade ribeirinha de Saubara, no Recôncavo Baiano. Os camarões são defumados dentro de uma oca com brasas de aroeiro.
“Cada família tem a sua receita, mas gira tudo perto do mesmo núcleo, receitas de família e de Salvador. Quem é natural de Salvador cresce comendo arroz de polvo e xinxim de galinha, era algo que eu sentia falta no sabor, também me incomodava a comida baiana ser reduzida ao caldeirão fumegante com peixe e etc., isso é realmente relevante, tem o seu valor incontestável, mas não é só isso, não dá para reduzir toda essa culinária a dois ou três pratos. Todo baiano come xinxim de galinha, mas você não acha em nenhum restaurante de Salvador para vender.”
PRETO COZINHA REFERÊNCIAS
“As referências vêm de viagens que fiz para fora do país, como Berlim, Montreal, Nova York, mas principalmente de Salvador. Quando a gente olha lá debaixo (do restaurante) parece que estamos olhando para uma casa no Carmo (centro histórico de Salvador), mas que ao mesmo tempo ela pode estar em outros lugares que vi no exterior, essa é a expectativa.”
O bar fica no andar debaixo da cozinha e é uma galeria de arte etílica, antes mesmo do drink ser criado já se pode admirar toda o design e disposição das bebidas, por sinal os drinks ganham nomes que lembram a gírias baianas, como o “Boca de Zero Nove” termo usado para se referir a pessoa que é arretada, que fala o que pensa e se garante.
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O cardápio é dividido entre “Para beliscar”, “Para ficar de pé”, “Drinks autorais”, “Drinks de inverno”, “Drinks clássicos” e “Sobremesas”. Vários sabores e texturas que são experimentados por um público curioso e também exigente. O Preto Cozinha recebe um grande número de celebridades, como Cauã Reymond, Miá Mello, Mariana Rios, Priscila Fantin, Foquinha, Rita Batista entre outros nomes que já aprovaram a culinária identitária de Rodrigo.
Atualmente, Rodrigo foi destaque na culinária nacional e concorre ao título de Chef Revelação no guia anual da Veja São Paulo na categoria “Comer & Beber”, é possível votar nos finalistas até o dia 14 de outubro.
Metendo a colher no assunto, Rodrigo trata da representatividade de pessoas pretas em altos cargos, agora como empresário, dono de restaurante e chef de cozinha. Isso muda a tradição de pensamentos conservadores de que quem comanda a cozinha, historicamente no Brasil, ficava lá nos fundos, junto do espaço que lhe era concedido.
Quem lidera o processo criativo e do cozimento, tem direito ao palco, e foi para frente do holofote que ele se direcionou segurando as suas obras de arte e de sabor.
Com representação de uma estética contemporânea, de regiões, tempos e ancestralidade, cozinheiro não faz somente comida, cria linguagens e novos gostos, já que a experimentação necessita de todos os sentidos. Comemos com os olhos, memorizamos com o paladar, levamos a boca com as mãos e nos apaixonamos pelo cheiro.
O restaurante traz mais traduções a comida baiana, oferecendo novas formas de entender que a Bahia, e o nordeste como um todo, não cabe em apenas um estilo, em uma moqueca ou em um caldeirão, uma perigosa caricatura muitas vezes pintada na TV.
É SOM DE PRETO
“Eu gosto de focar o som ambiente no jazz, porque quando eu era novo, em Salvador, ia para o jazz no MAM, essas memórias também compõem o restaurante. Você imaginaria ouvir um jazz na beira do bar de um restaurante em Salvador? O contexto é o Preto. Tem preto no blues, tem preto no hip hop, tem preto no samba, na música clássica e eu tenho preocupação em botar mais artistas negros. O critério é ter música boa, podemos oferecer essa trincheira de que ‘a gente também ganha‘“.
O restaurante Preto nasceu para contar a história de quem conseguiu, de quem venceu e passa o gosto da vitória em um prato com ingredientes finos e bem selecionados, deixando tudo o que há de ruídos da imparável São Paulo do lado de fora.
“Eu não lembro de quando não cozinhei, quase todas as minhas memórias afetivas envolvem de alguma maneira estar na cozinha, cozinhando, comendo ou cortando algo, é sério. Esses dias me perguntaram quando eu fiz o xinxim pela primeira vez, acho que eu era muito moleque porque não sei, ela sempre esteve ali.”
Da porta para dentro o que grita é a arte, seja as que estão nas paredes, no design aconchegante e industrial, nas plantas saudáveis e especialmente no frescor dos alimentos. Rodrigo Freire veio há mais de dez anos sozinho para São Paulo, mas trouxe consigo o mix que só a Bahia tem, mas agora São Paulo também pode experimentar.