A arte sonora é brilhante porque além de tudo é uma escolha, não se pode pendurar um som em uma parede para admirá-lo, é uma arte que necessita da ação e da atividade de quem a aprecia.
Escolher ir em um show, festival, concerto ou assistir à artistas que cantam em uma praça, é aceitar ser envolvido por vozes que desejam ser escutadas, já que expressam letras retiradas de cotidianos vividos por toda uma comunidade que carrega em si o sentimento de pertencer a uma mesma cultura.
Um dos elementos que norteiam a arte sonora é o ‘estímulo’ da audição, já que as obras criadas nesse aspecto podem usar músicas, sons tecnológicos ou criar uma experiência de instalação em ambientes com artistas performáticos emitindo sons com o corpo.
Essas formas de expressão recebem novas características ao longo do tempo, principalmente por dar um pontapé inicial para que outras obras nasçam e é daí que se apresentam as músicas de variados gêneros, ganhando os fones e plataformas de streaming do grande público. Mas não há uma definição para a arte sonora, alguns especialistas consideram que o uso de tons e efeitos de áudio pelos artistas sonoros, seria o mesmo que um pintor faz ao utilizar das cores e formas em seus traços. Outros críticos sugerem que há distinção entre compositor de música para o mercado, por exemplo, já que a arte sonora não depende só da propagação do som e da escuta, mas também do ambiente em que ela é colocada, feita para ser captada em um ambiente específico e criar reações.
Arte em: Sensação de Déjà vu
Como um convite ao passado ou uma aposta no futuro, algumas produções artísticas nascem de uma parceria imaginária, resultado de inspirações que fazem diferentes gerações se encontrarem, trazendo novos pensamentos que fazem um “remake” de visões.
A nossa cultura
Preferir certos tipos de gêneros musicais e ter o seu pintor ou diretor de cinema favorito, diz muito sobre a bagagem, criação familiar e interesses individuais adquiridos. Sabemos que quem produz as obras de entretenimento também possuem as suas referências e identificações com estilos e instrumentos sonoros específicos, já que um fã de filmes de terror pode estar assistindo – e gostando – de um filme do gênero que foi elaborado através de uma história de amor, a batida de uma música eletrônica pode ter nascido de um samba, entre outros desenvolvimentos e misturas possíveis que a arte permite na hora de criar.
Essa é a arte do encontro de produções entre autores em seus diversos nichos profissionais, que, além de expressar as suas vulnerabilidades na arte escolhida pra sobreviver, mostram a origem do pensamento, antes mesmo de a ideia virar matéria.
Vamos ver alguns dos casos em que a arte sonora encontrou com outros elementos culturais, criando novas formas de identidade para processos já estabelecidos como ‘clássicos’ na cultura popular.
Beethoven no beat!
O filme brasileiro ‘Se Eu Fosse Você’ foi lançado em 2006 e caiu no gosto público, direcionado por Daniel Filho, fez uma enorme bilheteria, levando 3.644.956 telespectadores aos cinemas.
Os personagens Cláudio e Helena, interpretados por Tony Ramos e Gloria Pires, trocam as suas personalidades de corpo após uma briga de casal.
Helena é uma professora de canto em um coral na igreja, mas agora, com o Cláudio assumindo o seu lugar, seus alunos recebem uma pitada de rap e hip-hop para uma apresentação do recital de fim de ano.
A música em questão é a ‘Nona Sinfonia’ de Ludwig Van Beethoven, um dos compositores da música clássica mais conhecidos mundialmente, considerado um pilar do clássico ocidental e influente até hoje. ‘A Nona Sinfonia’ de Beethoven, interpretada pelos alunos, ganhou novas notas e ritmo com a mescla de sons apresentadas no filme.
Cena do filme ‘Se Eu Fosse Você’:
Sampleando ele criou um novo clássico
Um dos funks mais tocados desde o seu lançamento em 2017, “Bum Bum Tam Tam” foi criado pelo paulistano MC Fioti e ganhou notoriedade até internacionalmente com a sua flauta envolvente. Também levou o trending topics da internet brasileira a loucura no início da vacinação contra a covid-19 com o funk “paródia” para a vacina CoronaVac, onde o artista cria a nova versão “Vacina Butantan” para o Instituto Butantan em parceria com a prefeitura de São Paulo, originando um novo clipe com os funcionários do centro de pesquisa biológica.
O que nem todos sabem é que o toque clássico da flauta inicial na batida do funk já existia e foi sampleada (técnica de produção, onde o artista extrai uma seção de áudio já existente para reinseri-lo em uma nova versão) pelo MC. A nota era tocada por outro artista gigante e referência no mundo das músicas clássicas, Johann Sebastian Bach.
Mais conhecido como Bach, ele foi um compositor cravista, mestre de capela, regente, organista, professor, violinista e violista oriundo da Alemanha. Umas de suas mais notórias composições é “Partita em la menor”, e é ela que carrega o som da flauta que chamou a atenção MC Fioti.
“Comecei a pesquisar alguns tipos de flauta, coisas antigas. E nisso eu achei a ‘flautinha do Sebastian Bach‘ “, conta. A descoberta foi por acaso: Fioti não sabia quem era o músico alemão e não sabe tocar o instrumento. Entre baixar a gravação da flauta que achou na internet, montar a batida, criar e gravar os vocais e produzir todo o resto da música, foram seis horas – o que ele considera “muito tempo”, conta MC Fioti em uma entrevista.
O funk sobre tela
O grupo Heavy Baile, lançou em setembro de 2020 o clipe da música ‘Noturno 150’, durante o período de distanciamento na pandemia, levaram o dançarino Ronald Sheick para protagonizar cenas lindíssimas de danças, com os passinhos de funk, em telas icônicas no Museu Metropolitano de Arte em Nova York, o MET. As cenas foram dirigidas por Daniel Venosa.
A música que carrega em seu nome o ‘150’, referente ao estilo da batida mais acelerada do funk também fez uma homenagem aos 150 anos do aniversário do museu.
O MET é um dos museus mais importantes do mundo e que abriga uma importante coleção de pintura europeia e obras da arte antigas, algumas entre seu acervo são: gregas, romanas, egípcias, assírio-babilónicas e orientais.
O dançarino passeou por obras como: Edgar Degas, Gustave Courbet e William Turner.
“Acho que ali uma arte ou uma obra complementa a outra. Acredito que o passinho foi mais uma pincelada sutil de um artista que traz nos pés a sua poesia”, Sheik.
Assista ao clipe:
BABYLON BY GUS VOL II: NO PRINCÍPIO ERA UM FILME
Que o rapper Black Alien é fenomenal quando o assunto é referência, isso, todos já sabem, mas a magia do seu disco ‘Babylon By Gus – Vol. II: No Princípio Era O Verbo’, lançado em 2005, foi uma das obras sonoras mais enriquecedoras de sua trajetória, porém o assunto aqui é a estética da capa que trouxe uma abordagem bem forte, deixando as letras ainda mais impactantes.
A capa do seu disco faz referência ao filme ‘O Sétimo Selo’ (1957) de Ingmar Bergman e do ‘Rumble fish’ (1983), em português ‘O selvagem da motocicleta’.
Do gênero drama, escrito e dirigido por Ingmar Bergmanm, o filme é ambientado em um período apocalíptico da Idade Média europeia. O título remete ao livro bíblico denominado ‘Apocalipse ou Revelação‘. O lançamento do filme ocorreu em um período em que a Segunda Guerra Mundial e a bomba atômica ainda marcavam a vida dos europeus com muitos traumas.
A referência que Black Alien apresenta fica clara em um álbum plural e com ritmos do rap, do rock, do reggae e soul.
De acordo com o rapper, em uma entrevista, o desenho é a realização de um sonho antigo:
“Tive a honra de poder dividir minha ideia e ser captado em 100% pela a delicadeza e profissionalismo de Felipe e Marianna“, disse Black Alien em uma entrevista sobre os artistas que criaram a capa para o seu disco.
O disco fala sobre batalhas contra as drogas, passagens por clínicas de reabilitação e depressão. Black fala muito sobre a sobriedade nas músicas e como isso se tornou o foco para o artista seguir em frente e manter a esperança.
Cena do filme ‘O Sétimo Selo’ :
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A partir de agora considero tudo blues
Muitos artistas do rap, hip hop, trap e funk bebem das artes plásticas para compor as suas letras e produzir novos tipos de sons e clipes que formam outros símbolos na atualidade.
No álbum do rapper Baco Exu do Blues, são encontradas referências em suas letras ao artista plástico Jean-Michel Basquiat, que infelizmente morreu precocemente em 1988 aos 27 anos, fazendo o seu nome, em curto tempo, estrondar em um grande sucesso no mundo da arte com o neoexpressionismo, um movimento que valorizava aspectos da cultura com maior foco em sentimentos e memórias. Onde os artistas redescobriam o prazer pela pintura e saiam em defesa a uma arte universal que dá lugar a minorias e se faz menos preocupada com padrões de beleza, usando cores fortes e também mais agressivas.
Basquiat é citado no som ‘Bluesman’ (faixa 01 do álbum que carrega o mesmo nome), quando o rapper Diogo diz “Jovem, Basquiat, meu mundo é diferente, eu sou um dos poucos que não escondem o que sente”. Basquiat, em seu curto período de vida mostrou em suas pinturas que realmente os mundos podem ter cores e inspirações diferentes, deixou um legado de obras com traços e cores que via nas ruas, onde também abrigou vários dos seus grafites, sempre ressaltando uma visão muito humana carregada de detalhes.
Ele criou suas obras observando tudo ao seu alcance, vivendo o que podia e o que não podia, às vezes, somente tocando com os olhos ou ouvidos, mas sempre tendo o tato certo para que o seu nome seja lembrado por uma legião de fãs de pintura e artes visuais, também por um rapper de Salvador (BH) que ganha as massas com a sua potência vocal e sensibilidade em viver.