Xamã, Matuê, Whindersson Nunes, o que esses nomes têm em comum? Ambos marcaram 2020 com álbuns que sacodiram o cenário do rap nacional, acumularam milhões de números em alcance e popularizaram o gênero em proporções jamais vistas. Respeitando toda a riqueza histórica de quem veio antes, e valorizando aqueles que não ganham tanto alcance por razões óbvias da voracidade do mercado, podemos ter alguns pontos de vista que explicam o tamanho desses artistas.
Para uma das referências do rap internacional, Mos Def, no documentário Art of Rap (A Arte do Rap-2012), o rap não é, e nunca foi pop. Pelo contrário, é um ritmo tribal, uma arte folk. No entanto, mesmo com a constante reafirmação do papel do hip hop, novos ciclos se iniciam e se terminam até dentro desse movimento. Hoje, existe uma nova tendência que explica isso. Podemos entender o que há de diferente olhando pelo panorama nacional.
Xamã
Xamã sempre teve como referências nomes da MPB. Talvez por isso ele aponte o rap como a nova Música Popular Brasileira, como comentou em entrevista ao Jornal O Globo. Hoje, menos agressivo e mais disposto a se fundir com outros artistas de diversos gêneros, Xamã marca Zodíaco, seu álbum lançado em dezembro de 2020, como um marco na música brasileira. Trazendo feats com Marilia Mendonça e Luisa Sonsa, ele penetra um público que não costuma se atrair pelas batidas e rimas do rap.
Além dessas participações, parcerias com Glória Groove e Agnes Nunes também foram fundamentais para a explosão do disco, que bateu a marca de 35 milhões de streamings em 5 dias. Um número que chama atenção comparado a outros momentos da carreira do artista. Porém, existem opiniões contrárias à ideia de Xamã. Para ele, mais próximo do MPB, para outros, pop demais, fugindo a essência. Na época dos boombaps, o carioca conseguiu bons números, mas nunca chegou a tamanha popularidade como agora nessa nova fase, mais “leve”.
Faz algum tempo que o ‘cria’ da Zona Oeste do Rio acena para novos ritmos. Com um disco falando sobre signos e com parcerias nunca vistas, ele aumenta as expectativas do novo público para os próximos trabalhos. É uma pena que o novo público não tenha curiosidade em conhecer a agressividade lírica do ‘Xamanzin’ flow vendedor de amendoim. De qualquer forma, o rapper se mostra cada vez mais completo musicalmente.
Matuê
Matuê, por sua vez, emplacou seu álbum nas tendências das principais plataformas de streaming. A Máquina do Tempo trouxe a proposta do trap artesanal, trabalhado minuciosamente durante meses. Com um merchandising invejável, e uma imensa expectativa de seu público, o cearense sabe do poder que tem em mãos. Criticado pela pegada comercial desde antes do álbum, Matuê conta que o disco foi um processo construído em cima da personificação do seu ‘eu’, falando de conflitos internos, conquistas e anseios.
Demonstrando muita maturidade e competência técnica, o artista criou sobre si um personagem que desperta a ambição das pessoas, seja na vontade de ser alguém f#d4 ou uma pessoa com muita grana. Ambição todo mundo tem, seja em grandes ou pequenas proporções, mas o ser humano está sempre em busca de algo que não tem. Matuê explorou isso na sua carreira, e as pessoas se identificaram.
O artista cearense, diferente de uma parte dos músicos da cena, prefere não lançar sons em curtos períodos de tempo. Matuê defende a teoria que algo deve ser produzido durante muito tempo para ser bom o suficiente para ir ao mundo. Com lançamentos em longos períodos de tempo, ele fica dias no estúdio testando e produzindo sua arte com uma única preocupação, se sentir bem, como contou ao Flow Podcast.
Óbvio que isso não funciona para todos os músicos, muitos nem podem se dar a esse luxo, mas aguçar a expectativa e o desejo do público durante um bom tempo é uma estratégia que faz diferença para artistas do mainstream, como o Matuê. O resultado foi as sete faixas do álbum marcarem o Top 15 das músicas mais ouvidas no Spotify Brasil na estreia. Não satisfeito, o músico ainda lançou uma coleção de camisas, adesivos, disco, além de um HQ sobre a narrativa do album.
Whindersson Nunes
Whindersson Nunes foi outro que usou da estética do trap para fazer suas composições criativas ecoarem. Respeitando a potência do rap, e, ousando, utilizando o pseudônimo de Lil Whind, o artista reuniu um time extremamente qualificado de produtores e parceiros para idealizar o álbum Piauí. Compondo sobre cuscuz, mas também falando de conquistas intercaladas com desafios do nordestino, o piauiense enriqueceu seu disco com faixas que variam entre seu poder cômico e histórias reais de um brasileiro comum em busca de vencer na vida. Whindersson quebrou a ideia de humorista só compor para fazer graça.
Desde o início de sua carreira ele deixava visível seu talento também para a música. Instrumentista e sempre antenado nas tendências, partiu logo para a vertente do rap que mais se popularizou nos últimos tempos, o trap. E, vale lembrar também, que o artista é próximo do Matuê, com quem trocou ideias sobre suas produções no disco. Com participações de nomes como o do rapper RAPadura e do Hungria Hip Hop, Lil Whind emplacou nove das onze músicas do álbum no top 200 do Spotify, no lançamento, e milhões de acessos no YouTube.
Com a expansão da internet, e o encurtamento das fronteiras, hoje, basta alguns cliques para acessar aquela música preferida. Isso fez com que houvesse algumas fusões e quebra de barreiras no rap. Artistas de grande notoriedade no gênero como Djonga, o próprio Xamã, e a lenda Emicida, sabem que é necessário abrir novos horizontes. Por isso, entendem que não precisam apenas fazer o mesmo, sempre, para se sentirem satisfeitos. Pelo contrário, a arte de fazer música é extensa demais para apenas se limitar a um estilo, ritmo ou gênero.
Hoje, tanto faz a forma em que a mensagem chega, o que mais interessa é que chegue. O rap precisa, em doses corretas, se tornar “mercadológico” para alcançar novos ares, reconhecimento e investimentos. A essência está resguardada pelos orixás do hip hop, sempre que necessário, que voltemos lá, inspiração não vai faltar.